Nas últimas décadas, a China adotou uma estratégia infalível para se consolidar como potência econômica: copiar o que os outros países faziam de melhor. Foi assim na indústria de computadores, na produção de carros, na criação de jogos eletrônicos e no desenvolvimento de celulares. Com o passar dos anos, a nação da Grande Muralha não apenas dominou essas tecnologias, mas começou a inovar em diversas áreas, criando soluções próprias — e sempre mais baratas — que hoje lideram o mercado global. Em 2024, a montadora chinesa de carros elétricos BYD ultrapassou em faturamento a americana Tesla, e a fabricante de celulares Xiaomi foi a empresa do ramo que mais cresceu no mundo, à frente da sul-coreana Samsung e da também americana Apple. Mas nada disso se compara ao impacto que o dragão asiático começa a provocar no campo da inteligência artificial, com uma ameaça real ao domínio dos Estados Unidos por meio dessa tecnologia estratégica. Lançado pela californiana OpenAI no final de 2022, o ChatGPT provocou um terremoto no setor ao simular conversação humana e oferecer respostas precisas para perguntas complexas com um nível de acerto que assombra seus usuários. Nos últimos dias, contudo, como um furacão disruptivo surgido do nada, a empresa chinesa DeepSeek virou o negócio da IA de cabeça para baixo, replicando — e, em alguns aspectos, melhorando — uma inovação gestada no Ocidente.
A chegada da inteligência artificial criada pela DeepSeek provocou estragos mundo afora. Em apenas um dia, os maiores empresários do setor de tecnologia perderam 94 bilhões de dólares. O terremoto em Wall Street foi provocado pela desconfiança sobre o futuro de companhias ligadas ao mercado de IA diante da concorrência chinesa. Jensen Huang, cofundador da fabricante de chips Nvidia, e Larry Ellison, da empresa de software Oracle, contabilizaram 20 bilhões em prejuízos após a queda de 15% nas ações de suas companhias.
Semelhante ao ChatGPT, o chatbot chinês DeepSeek-V3 surgiu com um atributo vital: o baixo custo para o seu desenvolvimento. A OpenAI nasceu após um aporte inicial de 1 bilhão de dólares, e cada nova versão do ChatGPT exige centenas de milhões de dólares em investimentos. De seu lado, segundo informações iniciais, a DeepSeek teria sido viabilizada com apenas 6 milhões de dólares, o que pode mudar para sempre a escala de investimentos e a dinâmica desse mercado.
Definitivamente, não é pouca coisa. O mundo da tecnologia experimentou um boom de otimismo desde o lançamento do ChatGPT, acompanhado de investimentos maciços no setor. As big techs Alphabet, Amazon, Apple, Meta e Microsoft têm destinado, juntas, ao menos 60 bilhões de dólares por trimestre a projetos da área — uma cifra que restringe a competição e consolida o domínio americano no segmento da inteligência artificial. A chegada da DeepSeek mudou as regras desse jogo ao oferecer um sistema barato e eficaz, repetindo a mesma estratégia usada pelos chineses em outras áreas de negócios.
Para algumas tarefas, como a busca e a análise de dados técnicos e científicos, a ferramenta parece superar o ChatGPT. Outra qualidade da plataforma chinesa é o fato de manter o código-fonte aberto, permitindo que qualquer pessoa o utilize como base para desenvolver novas soluções em IA. Ou seja, a partir de agora tudo indica que companhias pequenas vão utilizar o modelo aberto da DeepSeek para oferecer serviços a um custo menor. “Nos casos das inteligências da OpenAI e do Google, isso é impensável”, diz Raul Ikeda, mestre em computação pelo ITA e professor do Insper. “Até hoje não sabemos como são os modelos dessas IAs, que permanecem como um segredo industrial das empresas.”
Basta navegar por alguns minutos pelas profundezas da DeepSeek para entender que a ferramenta possui também alguns defeitos e limitações, várias delas por estar sob um regime ditatorial. Suas respostas para temas técnicos são rápidas e precisas, mas ela se esquiva quando questionada sobre assuntos considerados sensíveis ao país. A DeepSeek ignora o Massacre da Praça da Paz Celestial, ocorrido em Pequim em 1989 e que resultou na morte de milhares de civis que protestavam pacificamente contra o regime. “Desculpe, isso está além do meu escopo atual. Vamos falar sobre outra coisa”, disse ao ser abordada para comentar o evento histórico.
O mesmo robô chinês que foge das questões políticas espinhosas surpreendeu ao utilizar chips menos avançados do que os empregados pelos gigantes ocidentais, mas sem comprometer a eficiência de seu modelo de IA. Ao usar processadores mais simples, os engenheiros da startup economizaram milhões de dólares — e isso aumentou ainda mais o tamanho do choque nos rivais. A solução, vale lembrar, é fruto de uma necessidade. As sanções comerciais impostas pelos Estados Unidos e por países da Europa impedem a China de comprar processadores de última geração, incluindo modelos mais recentes da Nvidia. Sem acesso à tecnologia, os chineses decidiram fazer o negócio por conta própria — e agora se vingam do Ocidente com uma ferramenta poderosa. “As empresas chinesas estão conseguindo contornar a situação otimizando a sua produção tecnológica”, diz Pietro Delai, diretor de pesquisa da International Data Corporation (IDC) na América Latina.
Características culturais do gigante asiático ajudam a explicar essa capacidade de superar severas barreiras comerciais no desenvolvimento tecnológico. “A ambição de vencer na vida está muito presente nos jovens, cujos pais cresceram em um país diferente, muito mais pobre”, diz Larissa Wachholz, mestre em estudos contemporâneos da China e sócia da consultoria Vallya. Outros dois aspectos contribuíram para impulsionar a nação: a valorização da educação e o fomento à inovação.
A DeepSeek é exemplo disso. A empresa mantém sólidas parcerias com as principais universidades chinesas, e muitos PhDs integram o seu quadro de funcionários. Fundada em 2023 pelo cientista da computação Liang Wenfeng, a startup surgiu como um projeto paralelo dentro do fundo de investimentos chinês High-Flyer, que construiu seu portfólio utilizando modelos de IA. Na DeepSeek, Wenfeng se envolve pessoalmente nas pesquisas feitas pela empresa, embora goste de se cercar de talentos. Tanto é assim que paga os maiores salários de IA na China.
Entre os rivais, a DeepSeek desperta admiração e desconfiança. Dono da OpenAI, o americano Sam Altman, considerado o pai do ChatGTP, referiu-se inicialmente à rival como um “modelo impressionante”. Pouco depois, passada a fase do espanto, vieram as críticas. E elas foram pesadas. A OpenAI afirmou ter provas de que a startup chinesa se apropriou de dados sigilosos de seu sistema operacional — a suspeita é de que tenha violado a propriedade intelectual do ChatGPT. A acusação envolve o uso de uma técnica chamada “destilação”, na qual modelos menores aprendem a partir de sistemas maiores e mais avançados. Trata-se do primeiro capítulo de uma briga que terá ainda muitos lances. A disputa entre a OpenAI e a DeepSeek é apenas o começo de uma batalha tecnológica mais ampla, que promete redefinir o domínio da inteligência artificial no mundo.
Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2025, edição nº 2929