Nas planícies abissais no fundo do mar, onde não chega a luz do Sol para que possa haver fotossíntese, é produzido oxigénio. Como? A resposta está nos nódulos polimetálicos, uma espécie de pedras arredondadas de depósitos minerais que são cobiçados por uma nova indústria mineira. Estes calhaus do fundo do mar podem ter um papel fundamental para os ecossistemas dos fundos marinhos e, talvez, contar-nos um capítulo ainda desconhecido da história da origem da vida. Mas a actividade humana põe-nos em risco.
Plantas e algas, organismos capazes de fazer a fotossíntese, usam a energia da luz solar para criar oxigénio – cujo aparecimento na Terra foi fundamental para que se desenvolvessem seres complexos, como animais.
“Para aparecer a vida aeróbica [que respira oxigénio] no planeta, tinha de haver oxigénio, e o que sabemos é que este surgiu na Terra quando apareceram organismos fotossintéticos”, explicou num comunicado de imprensa Andrew Sweetman, da Associação Escocesa de Ciências Marinhas, o primeiro autor do artigo publicado esta semana na revista Nature Geoscience deu-nos a conhecer aquilo a que os cientistas chamaram “oxigénio escuro”: oxigénio produzido na completa escuridão, a 4000 metros de profundidade, na zona central do oceano Pacífico.
Isto é revolucionário porque plantas e algas, os organismos capazes de fazer fotossíntese, usam a energia da luz solar para criar oxigénio. Mas nos fundos marinhos da zona Clarion-Clipperton – uma área gigantesca, com mais de sete milhões de km2 no Pacífico, ou seja, mais de metade dos dez milhões de km2 do continente europeu –, rica em biodiversidade e recursos minerais, algo está a produzir oxigénio continuadamente. “Acho que temos de revisitar questões como: onde começou a vida aeróbica?”, afirmou Andrew Sweetman.
Ali podem nascer minas
A equipa de Sweetman fez esta descoberta enquanto estudava a cordilheira submarina Clarion-Cilpperton, no Pacífico, uma das primeiras zonas que poderá vir a ser palco de mineração no fundo do mar. Isto porque os tais nódulos polimetálicos contêm minérios com manganês, níquel e cobalto, que são necessários para produzir as baterias de iões de lítio dos telemóveis e dos veículos eléctricos, por exemplo.
O seu trabalho foi apoiado financeiramente pela Nauru Ocean Resources, uma subsidiária da empresa The Metals Company, que está interessada em avançar na exploração mineira do fundo do mar, aproveitando a iniciativa do pequeno país insular Nauru.
O futuro da extracção de minério do mar profundo está neste momento a ser discutido, numa reunião em Kingston, na Jamaica, do conselho da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA), uma agência das Nações Unidas que tem a dupla responsabilidade de cuidar da preservação do fundo do mar e emitir licenças de exploração mineira.
O conselho reuniu-se durante a primeira parte de Julho e, agora, a partir desta segunda-feira, a Assembleia de 168 membros da ISA, onde Portugal está representado, deverá eleger uma nova direcção. A brasileira Letícia Carvalho concorre contra o actual secretário-geral, o britânico Michael Lodge, que cumpriu já dois mandatos, desde 2016.
Na ISA estão a ser analisadas propostas de novas regras que permitam às empresas extrair minerais do fundo do oceano, para criar um “código mineiro”, há muito aguardado. Há uma espécie de “corrida ao ouro” aos metais raros do fundo do mar, para usar nas tecnologias de transição energética, mas são crescentes as preocupações sobre os riscos ambientais dessa actividade.
Vários países, entre os quais Portugal é contabilizado, defendem uma moratória sobre a extracção de minerais, por não se compreenderem ainda bem os impactos ambientais que pode ter. Há muitos factores desconhecidos – como indica esta descoberta do oxigénio escuro.
O futuro joga-se nestas eleições
Michael Lodge, cuja proximidade com empresas interessadas na mineração em mar profundo tem sido notada, com desconforto, por muitos observadores, defende que se acelere na elaboração do código mineiro. A sua candidatura é patrocinada pelo Kiribati, um pequeno Estado insular do Pacífico – que, em Junho, tentou persuadir a oceanógrafa brasileira Letícia Carvalho a retirar a sua candidatura, em troca de um possível alto cargo na ISA, noticiou o New York Times.
A cientista nomeada pelo Governo brasileiro defende uma abordagem mais ponderada, reconhecendo que poderá levar anos até se conseguir terminar a elaboração das regras do código mineiro, porque o desconhecimento é grande. E que nenhuma licença de mineração deve ser atribuída antes disso. Brasília, aliás, defende uma moratória de dez anos sobre a mineração em mar profundo.
Mas está em vigor uma corrida contra o tempo. A chamada “regra dos dois anos” da Convenção das Nações Unidas da Lei do Mar (UNCLOS) foi accionada em 2021, por Nauru: dentro desse prazo, terão de ser aceites pedidos para extracção mineira no fundo do mar, quer o código mineiro esteja terminado, quer não.
Embora essa data limite fosse Julho de 2023, os membros da ISA acordaram prolongá-lo até 2025, para tentar chegar a acordo sobre o código mineiro. O problema é que se algumas nações evoluíram no sentido de defender uma moratória sobre esta actividade, outras continuam apostadas em explorar o minério dos fundos oceânicos, e têm pressa.
Pressão das empresas
Por trás de Nauru, um Estado que tem apenas 11 mil habitantes, está a empresa canadiana The Metals Company, que tem feito intensa campanha defendendo que a exploração mineira no fundo do mar não só é viável, como tem menos riscos ambientais do que a que é feita em terra firme.
Gerard Barron, o administrador da Metals Company, disse à Reuters, já depois de ter sido publicado o estudo sobre o oxigénio escuro, que a sua empresa pretende pedir uma licença para extrair metais do fundo do oceano ainda este ano, após a reunião do conselho e da assembleia da ISA.
“As indicações que demos ao mercado foram essas. Não vemos motivos para as alterar. Da nossa perspectiva, o que esperamos desta reunião da ISA é um progresso no sentido de finalizar as regulamentações” da actividade mineira no mar profundo, adiantou Barron.
Aliás, Gerald Barron está satisfeito com o andamento do processo na ISA: “Tem havido um tremendo progresso desde que apresentamos o aviso de dois anos [com Nauru], e dá-nos cobertura legal para apresentar o pedido de licença a qualquer altura”, disse à Reuters.
Sobre a descoberta do oxigénio escuro, aliás, a The Metals Company passou ao ataque. Apesar de ter financiado o trabalho dos cientistas, não dá crédito aos seus resultados, que classifica como “um artigo profundamente erróneo”, num comunicado divulgado no seu site.
A empresa lança ainda a suspeita por o estudo ter sido publicado numa revista da família da Nature, “que assumiu uma forte posição contra a extracção de minerais do fundo do mar”, afirma. A Nature Geoscience é uma revista científica com revisão pelos pares, o mecanismo aceite pela comunidade científica para validação da investigação.
Parecia uma avaria dos sensores
Na verdade, quando a equipa de Sweetman começou a detectar oxigénio – a quantidade deste gás ia aumentando, durante um determinado período, em vez de diminuir –, os cientistas acharam que estavam a fazer algo de errado. “Pensámos que os sensores estavam avariados, porque em todos os estudos feitos antes no mar profundo, só se via o oxigénio a ser consumido, e não a ser produzido”, explicou o escocês. Recalibraram os sensores, mas tinham dez anos de recolha de dados com estas estranhas leituras de oxigénio.
Para tirar as teimas, fizeram experiências com métodos diferentes. “Quando ambos os métodos deram os mesmos resultados, percebemos que tínhamos descoberto algo revolucionário, algo em que nunca ninguém tinha pensado”, relatou Sweetman.
Os cientistas começaram a pensar se os nódulos polimetálicos no fundo do mar seriam capazes de gerar energia eléctrica suficiente para separar os átomos de hidrogénio e oxigénio da água através do processo de electrólise. Assim, o oxigénio seria produzido a partir da água do mar, através da passagem de uma corrente eléctrica.
Para separar as moléculas da água do mar, a energia necessária é mínima: bastam 1,5 volts, o que é a voltagem de uma bateria AA, como que anima o rato de um computado, por exemplo. Vários quilos de nódulos polimetálicos foram despachados do fundo do Pacífico para a Universidade Northwestern, no Ilinóis (EUA), para conduzir uma série de experiências.
Pedras como baterias
Os cientistas surpreenderam-se ao registar voltagens tão elevadas como 0,95 volts à superfície de um único nódulo. Quando há muitos nódulos juntos, como acontece naturalmente, a voltagem pode ser muito maior, como baterias ligadas umas às outras, explica um comunicado da Universidade Northwestern.
“Parece que descobrimos uma geobateria natural”, comentou o químico Franz Geiger, outro dos autores do estudo, em cujo laboratório foram feitas estas experiências. “Estas geobaterias são a base de uma possível explicação para a produção de oxigénio escuro no fundo do oceano”, acrescentou o cientista da Universidade Northwestern.
“Esta descoberta fundamental tem o potencial de transformar a nossa compreensão da produção natural de oxigénio destaca a necessidade crítica da aplicação do Princípio da Precaução em actividades extractivas, como a mineração em mar profundo”, comentou a Sustainable Ocean Alliance (SOA), uma organização focada em jovens líderes do oceano, com idades entre os 18 e 35 anos, que tem o estatuto de observador nas reuniões da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, como a que está a decorrer.
Bióloga marinha e representante regional para a Europa Lusofonia da SOA, Eugénia Barroca está presente em Kingston, na Jamaica, e salienta a importância desta descoberta inesperada sobre os ecossistemas do mar profundo. “O nosso conhecimento tão limitado destes ecossistemas tem de impulsionar o investimento na investigação científica e prevenir impactos catastróficos de uma indústria como a mineração em mar profundo através de uma moratória, para permitir que as gerações actuais e futuras possam beneficiar da peculiaridade do mar profundo para o bem-estar da humanidade”, declarou.
Risco de sufocar os ecossistemas
A mensagem é mesmo essa. Várias grandes empresas estão ansiosas para começar a extrair minérios do fundo do mar, que se encontram nestas pepitas, nestes nódulos minerais capazes de produzir oxigénio, a profundidades ainda maiores, 3000 ou 6000 metros. “Temos de repensar a mineração destes materiais, para não esgotarmos a fonte de oxigénio para a vida marinha no fundo do mar”, salientou Franz Gieger.
Os autores desta investigação dizem que é difícil fazer uma estimativa sobre quanto oxigénio é produzido pelos nódulos polimetálicos nos fundos marinhos, a uma escala mais vasta. Mas sugerem que a reacção química que os nódulos realizam, transformando água do mar em oxigénio, poderá ser o suporte de vida de ecossistemas dos fundos marinhos. E retirando estes cobiçados nódulos do fundo do mar, podemos ditar a sua morte, sufocando-os.
É preciso mais investigação sobre este “oxigénio escuro”, e avaliar também se os sedimentos que ficarão em suspensão com a actividade de extracção mineira não poderão também travar o processo. “Com este processo, geramos muitas perguntas ainda sem resposta. Temos de pensar bem em como fazer a mineração destes módulos. São pedras, mas são baterias”, comentou Sweetman.
Os potenciais efeitos ambientais de iniciar a exploração mineira no fundo do mar, recolher estes nódulos, não são ainda bem compreendidos. Mas há dados que assustam. “Em 2016 e 2017, zonas onde houve extracção mineira na década de 1980 foram visitadas por biólogos marinhos. E perceberam que nem as bactérias tinham recuperado nestas áreas”, contou Geiger. “Nas zonas onde não tinha havido mineração, a vida marinha continuava a florescer. Mas continuamos sem saber porque é que estas ‘zonas mortas’ persistem durante décadas”, avisou.
Correcção às 12h23: Corrigida a profundidade a que se podem encontrar estes nódulos minerais, para 3000 ou 6000 metros
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