A competição entre a China e os EUA para o domínio da inteligência artificial (IA), que ganha novos contornos com o segundo governo de Donald Trump, levará a “um cenário de liderança compartilhada”, em que cada país “se destaca em áreas específicas”. O desfecho é distinto de uma corrida, em que há um único vencedor.
A avaliação com verniz diplomático é do DeepSeek, robô de IA da startup chinesa de mesmo nome e que começou a assombrar as gigantes americanas nos últimos meses. O lançamento de modelos que prometem tanta potência quanto a dos competidores americanos, mas a um custo significativamente menor, colocou a empresa no radar do Vale do Silício.
Para os usuários, a interação com a ferramenta chinesa é tão simples quanto conversar com o ChatGPT, o aplicativo da OpenAI que catalisou os avanços da IA generativa. Acessível em uma versão gratuita pelo computador ou aplicativo, assim como concorrentes, a IA da DeepSeek também processa imagens e documentos, além de responder a perguntas e pesquisar informações na internet.
A resposta da IA chinesa sobre o futuro da disputa tecnológica entre as maiores economias do mundo veio após a pergunta do GLOBO: “A China deverá superar os EUA no desenvolvimento da IA?” O sistema completou a resposta citando que Pequim poderá ser líder em aplicações práticas e em escala, mas os americanos devem continuar “a ser pioneiros em pesquisa básica e em inovação disruptiva”.
O impulso chinês para o setor, que envolve um plano de longo prazo para liderar a indústria de IA no mundo até 2030, já despertava atenção de Washington antes de a DeepSeek entrar no radar. A chegada da startup fundada em 2023, no entanto, mudou o jogo de forças entre as duas potências, na avaliação do pesquisador Anderson da Silva Soares, do Instituto de Informática da Universidade Federal de Goiás (UFG).
— A DeepSeek redefiniu a força do que está acontecendo com a IA. Os modelos trazem o que de melhor já existe nos EUA, mas de forma aberta, acessível para quem quiser usar — diz Soares. — Foi uma prova de que realmente existem duas potências em IA.
Os modelos de linguagem de IA, como são chamados, funcionam como uma espécie de “cérebro” por trás dos aplicativos. Os modelos mais destacados da DeepSeek são o DeepSeek-V3 e o DeepSeek-R1.
O primeiro, lançado no início deste ano, marcou a virada de chave da startup ao demonstrar para o mundo que a China poderia desenvolver modelos de linguagem poderosos com menos recursos computacionais.
Treinado com chips da Nvidia menos avançados que os usados por concorrentes americanos, o V3 alcançou desempenho similar ao GPT-4, da OpenAI, com um orçamento de apenas US$ 5,6 milhões, segundo a empresa. O valor é significativamente inferior aos gastos das gigantes americanas, que têm investido bilhões de dólares para criar seus modelos.
No início desta semana, a startup lançou o DeepSeek-R1, projetado para tarefas que envolvem a resolução de problemas, principalmente de matemática e programação. O sistema rivaliza diretamente com o modelo o1, da OpenAI, lançado em setembro do ano passado, marco da companhia ao apresentar uma IA capaz de realizar raciocínios complexos.
— Há diversos esforços na China para a IA, e os modelos da DeepSeek não são os únicos — ressalta Fábio Cozman, diretor do Centro de Inteligência Artificial da USP. — Os sistemas da empresa têm demonstrado alto desempenho e foram construídos com poucos recursos. Isso abre uma possibilidade para outros países, inclusive o Brasil, porque demonstra que a boa engenharia pode gerar inovações em IA sem investimentos tão massivos.
A DeepSeek surgiu como uma aposta ambiciosa para competir com gigantes que dominam o setor. Seu fundador, Liang Wenfeng, é também criador do fundo chinês High-Flyer, que administra cerca de US$ 8 bilhões em ativos.
O pesquisador Gabriel Bertocco, do Recod.ai, laboratório de IA da Unicamp, afirma que, em testes feitos no centro de pesquisa, os modelos de IA da DeepSeek mostraram ter tanta eficiência quanto os da OpenAI para tarefas de programação.
— O que me impressiona é que, para algumas tarefas, o DeepSeek tem demonstrado uma performance comparável à dos modelos fechados da OpenAI. Ele é bem competitivo — diz Bertocco.
Wagner Meira Júnior, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que um ponto que impressionou os pesquisadores foi o valor que eles alegaram ter investido para desenvolver seus modelos. Ele pondera que os relatórios apresentados pela startup chinesa ainda precisam ser revisados por pares.
— Mas se for tudo realmente como está sendo apresentado, significa que a batalha ainda vai ser sangrenta.