Eram pelo menos cinco opções de vinho rosé na prateleira, com preços de até R$ 100. Eu tinha pouco tempo (fora a falta de conhecimento) para escolher. Abri o celular, tirei uma foto da prateleira e mandei para o ChatGPT: “Qual desses vinhos eu deveria comprar?”.
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O robô virtual identificou quatro garrafas do tipo que eu queria e, em poucos segundos, enviou as características gerais de cada vinho. “Agora faça a avaliação levando em consideração a relação custo/benefício”, pedi. Meu parco conhecimento enólogo me impede de avaliar se ele disse a verdade, mas saí do mercado com a recomendação da inteligência artificial (IA).
Em outros dilemas cotidianos, também recorro à IA. “Por favor, encontre um sinônimo para a palavra x nesta frase” é um pedido que faço recorrentemente para evitar repetições em textos.
Sim, temos o Google e o dicionário para isso, mas nada como ter uma resposta que entenda o contexto daquela frase, que seja rápida e, na maioria das vezes, certeira.
Também já usei o ChatGPT para perguntas mais pessoais (não que me orgulhe disso). Uma vez, por exemplo, descrevi para a IA um desentendimento que tive. Pedi ajuda para pensar em uma abordagem que fosse a mais correta.
A resposta foi sensata, mas bem do tipo que você receberia de uma máquina, sem muita subjetividade. Lembro de conselhos como “dê um tempo para processar”e “comunique-se de forma calma”.
200 milhões de usuários por semana
Pedir ajuda a um robô alimentado com todo tipo de dados da internet para tomar decisões do dia a dia pode parecer pouco sensato. Mas, desde o lançamento do ChatGPT, que popularizou a IA generativa e completa dois anos, sei que não sou a única a fazer isso.
A plataforma digital da OpenAI já é acessada atualmente por 200 milhões de pessoas semanalmente, o dobro de um ano atrás, segundo a empresa. Alguns usos da IA ainda mais intensos, e potencialmente mais preocupantes, também surgiram desde então — desde ter o chatbot como terapeuta até acreditar que ele pode ser fonte de informação decisiva para coisas importantes.
Um dos problemas conhecidos de darmos muita credibilidade para as IAs é a “alucinação” desses sistemas (sim, a condição de “estar fora de si” virou também uma característica de robôs, quando eles criam informações que não existem, mas parecem reais). A cientista da computação Nina da Hora, diretora do Instituto da Hora, vai além para explicar porque seria prudente usar a IA com parcimônia, e deixar decisões sérias para os humanos:
— Muitas vezes, a confiança vem de uma falsa sensação de que a IA é “neutra” ou “infalível”, mas ela não é. Esses sistemas carregam os vieses de seus criadores e dos dados — diz a pesquisadora, explicando que modelos de IA como o GPT não têm compreensão real do conteúdo que geram. — Eles funcionam com base em padrões estatísticos nos dados de treinamento. Além disso, a dependência de grandes volumes de dados e energia computacional levanta questões éticas e ambientais.
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Essas preocupações derivam da forma como o ChatGPT funciona, que é diferente de outros “robôs” conversadores que já existiam antes. Trata-se de um sistema computacional mais complexo e que demanda muito mais infraestrutura e energia.
Por trás do ChatGPT — e de todos os sistemas similares lançados depois — estão as chamadas redes neurais avançadas. Inspiradas no funcionamento do cérebro humano, elas são treinados com volumes gigantescos de informações. Assim como nossos neurônios, que trocam sinais para processar informações, as redes sintéticas possuem “nós” que recebem, processam e transmitem dados.
Essas conexões permitem que a IA identifique padrões e “aprenda” com as informações que recebe. Dessas redes, empresas como a OpenAI puderam desenvolver os “cérebros” por trás dos chats, chamados de LLM (sigla em inglês para grandes modelos de linguagem). São esses sistemas que têm inundado aplicações diversas.
Poucos meses depois que o ChatGPT foi lançado, Google, Meta e Microsoft apresentaram suas próprias versões. Fabricantes de celulares — como Apple e Samsung — passaram a desenvolver esses sistemas embutidos nos aparelhos.
E mesmo empresas de outros setores agora vêm adotando IA generativa de alguma forma. Só nas últimas semanas, por exemplo, Itaú, PicPay e C6 Bank anunciaram aqui no Brasil a criação de assistentes de IAs generativas que ajudam a fazer Pix pelo WhatsApp.
Arquitetura criada em 2017 pelo Google
Dora Kaufman, professora da PUC-SP e autora do livro “Desmistificando a Inteligência Artificial”, lembra que um passo dado pelo Google foi fundamental para a história da IA ter como ponto de inflexão o ChatGPT.
— A arquitetura de redes neurais profundas, que está por trás do ChatGPT, foi criada em 2017 pelo Google e lançada em código aberto — conta a pesquisadora.
Dora acrescenta que a IA já estava em várias aplicações digitais, mas não com uma interface como a inaugurada pela OpenAI:
— O que o ChatGPT trouxe de novo é a interface através da linguagem. Isso aproximou a IA das pessoas e por isso houve esse encantamento. Foi a primeira vez que elas tiveram consciência de que estavam interagindo com a inteligência artificial.
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Nina da Hora destaca outro fator importante para que o salto da IA generativa gerasse tanta atenção, bilhões em investimentos e novas aplicações da tecnologia: o marketing que a promoveu como uma “revolução”.
Na corrida iniciada para o desenvolvimento dessa inovação, a OpenAI deu início a uma onda de lançamentos de ferramentas, aplicativos e recursos que usam sistemas similares ao ChatGPT. Depois dele, bancos, consultorias e investidores têm tentado calcular o quanto a economia em torno da IA ainda poderá girar. A consultoria McKinsey estima que a IA generativa pode adicionar até US$ 4,4 trilhões por ano na economia global — o dobro do PIB do Brasil.
Esse é um salto, avalia Nina, que abre preocupações sobre a nossa relação com a tecnologia.
Entre as principais, ela destaca cinco: os vieses, ou seja, como a IA pode perpetuar e amplificar preconceitos existentes; a desinformação, já que a tecnologia pode criar conteúdos falsos, mas convincentes; a privacidade, com a coleta e uso massivo de dados pessoais para treinar os modelos; o impacto no emprego, diante da automação que ameaça diversas profissões; e, por fim, a dependência tecnológica, que nos expõe ao risco de reduzir nossa autonomia ao delegar decisões importantes a sistemas que, em última análise, não compreendem de fato o que estão processando.
ChatGPT, Gemini, Claude e MetaAI
Dos chatbots disponíveis em formato similar ao ChatGPT, o Gemini (do Google), o Claude (da Anthropic) e a MetaAI (da dona do Facebook) são os principais. Para escrever esta reportagem, eu fiz um teste. Sugeri a todos que tomassem decisões sobre o meu trabalho como parte de um experimento de um dia. Enquanto o ChatGPT é mais solícito, Gemini e Claude são mais cautelosos ao responder, ponderando limites éticos antes de aceitar tarefas.
Os amigos criados por inteligência artificial
Os amigos criados por inteligência artificial
Depois de perguntar sobre as decisões envolvidas, o objetivo do experimento e limites éticos da pauta, Claude respondeu que estava interessado em ajudar, mas precisava “de mais contexto para garantir que possamos colaborar de maneira ética e produtiva”.
O Gemini, após fazer perguntas, elenca uma série de ponderações e explica em quais tarefas poderia ser útil. Depois, completa: “Juntos, podemos revolucionar a forma como você produz conteúdo!”.
Eu não deixei todas as decisões de um dia da minha vida nas mãos desses robôs. Mas é provável que, mesmo aos poucos, uma parte do que fazemos no dia a dia, ao longo do tempo, acabe passando mais e mais por sistemas de IA, que vêm interagindo por imagem, vídeo e voz, cada vez mais parecidos com um assistente.
É possível também que mesmo quem resiste bravamente à IA generativa tenha de lidar com ela de alguma forma nos celulares, redes sociais, computadores, aplicativos de trabalho e outras ferramentas, avalia Marcos Barreto, professor da Fundação Vanzolini e da Poli-USP.
— A minha visão é que tanto o ChatGPT, quanto o Claude e o Gemini vão estar em uma camada intermediária nos serviços que os usuários finais usam, sem que eles saibam que estão lá. A tecnologia em si desaparece e sobra a camada final de interação com o usuário — aposta.
Para Anderson da Silva Soares, do Instituto de Informática da Universidade Federal de Goiás, mesmo que o ChatGPT “morra amanhã”, terá mudado a “compreensão do público geral” sobre IA:
— Veremos ainda uma redefinição de como interagimos com a máquina.