Inteligência Artificial chinesa surpreendeu o mundo, acelerou lançamentos das concorrentes e acendeu uma disputa que parecia dominada pelos EUA
Na penumbra de um apartamento iluminado apenas pelo brilho suave de uma tela, Theodore (personagem vivido pelo ator Joaquin Phoenix) conversa com Samantha. A voz suave, calorosa e inteligente surge de um computador. Ela ri das piadas dele, entende suas angústias e responde com afeto. A cena, eternizada no filme “Her” (2013), parecia um devaneio futurista há doze anos. Imagine recriar essa cena hoje: basta ativar seu assistente de Inteligência Artificial (IA) favorito. Seja pelo ChatGPT, pelo Gemini, Copilot ou pelo fenômeno mais recente DeepSeek, o diálogo flui de maneira surpreendentemente humana. Essas IAs compreendem o contexto, modulam emoções e podem até criar histórias ou debater filosofia com um nível de sofisticação inédito.
O avanço que antes parecia um salto distante agora está na palma da mão, impulsionado por uma nova “guerra fria” tecnológica entre gigantes do setor. “O que estamos vendo é uma revolução constante. Até algumas semanas atrás, o mundo pensava que os Estados Unidos eram os dominantes exclusivos das tecnologias de IA. O surgimento da chinesa DeepSeek mostrou que há mais caminhos”, comenta o especialista em tecnologia, Matheus Viana Machado. Enquanto a OpenAI, com seu ChatGPT, consolidou-se como líder nos últimos anos, e a Google apostou pesado no Gemini, a Microsoft fortaleceu seu ecossistema com o Copilot, integrando a IA às rotinas empresariais e ao Windows de maneira quase orgânica. Todas empresas estadunidenses. A DeepSeek entrou no jogo com modelos altamente treinados, superando a complexidade e a eficiência das concorrentes ocidentais.
Lucas Baggio Figueira, professor e especialista em IA, explica que, tecnicamente, a arquitetura das redes neurais entre os principais serviços oferecidos não apresenta diferenças substanciais.
No entanto, “o DeepSeek apresenta um desempenho ligeiramente inferior ao melhor modelo da OpenAI, o GPT-4. Em termos práticos, é como se o DeepSeek fosse equivalente ao GPT de alguns meses atrás”, afirma. No campo das IAs, razoabilidade e busca avançada são termos que não andavam juntos. Enquanto a razoabilidade se refere à capacidade de um modelo de IA gerar respostas coerentes, lógicas e sensatas dentro de um contexto específico. Por exemplo, se um usuário pergunta a uma IA sobre qual transporte usar para ir de uma cidade a outra, uma resposta razoável levaria em conta fatores como distância, tempo de viagem e custo. Se a IA sugerisse “vá caminhando” para um trajeto de 500 km, isso demonstraria falta de razoabilidade. Já a busca avançada, como o próprio nome diz, funciona como um buscador da internet ultrarrápido e eficiente. “Enquanto os buscadores tradicionais vão buscar palavras-chave, a IA vai fazer uma varredura em todo o conteúdo escrito e visual de sites e páginas”, explica Matheus. “O DeepSeek surgiu com baixo custo de operação comparado aos concorrentes e uniu razoabilidade e
busca avançada que antes não andavam juntas nas versões das outras IAs”. Prontamente, GPT e Gemini lançaram versões atualizadas e até mais eficientes que a IA chinesa.
A abordagem de código aberto da DeepSeek também adiciona um diferencial à competição. Segundo Lucas, essa estratégia “representa uma vantagem competitiva significativa, pois toda uma comunidade de desenvolvedores pode trabalhar para melhorar o código e o treinamento do modelo de IA”. No entanto, ele alerta que há riscos: “Os dados dos usuários podem ser um ponto de preocupação, especialmente quanto ao prompt oficial da DeepSeek, já que não está claro até onde essas informações poderão ser utilizadas. Mas vale lembrar que OpenAI, Google e Meta enfrentam preocupações semelhantes”. Já Matheus diz que a abordagem de código aberto é interessante apenas para um nicho reduzido. “A grande maioria dos usuários não vai ver diferenças práticas nisso, mas com certeza representa uma intenção de maior transparência em comparação com a black box (caixa preta) do GPT, cujo funcionamento é bem misterioso”, explica.
O QUE ESPERAR DA “GUERRA DA IA”
A competição entre essas tecnologias não é apenas um embate de inovação, mas também de política e economia. Governos passaram a regular de perto o uso da IA, preocupados com desinformação, viés algorítmico e impactos no mercado de trabalho. Nos EUA e na União Europeia, discussões sobre regulações mais rígidas e ética da IA ganham força. Já na China, o governo molda o avanço da DeepSeek sob diretrizes estratégicas que fortalecem sua posição global. “É importante entender que há muita gente no mundo todo fiscalizando e denunciando possíveis falhas éticas no funcionamento dessas tecnologias”, explica Matheus, que participa de grupos voltados ao monitoramento de IAs. Ele explica que uma IA não pode, por exemplo,
“aconselhar” alguém a resolver um problema cometendo um crime ou ferindo alguma lei.
Enquanto há preocupações quanto aos limites da Inteligência Artificial, também é inegável que o uso delas já está transformando o mercado de trabalho. Modelos cada vez mais acessíveis impulsionam a democratização da IA, permitindo que empresas menores tenham acesso a ferramentas avançadas. Isso também viabiliza novos serviços baseados em IA a preços mais baixos, beneficiando micro e pequenas empresas. Matheus acredita que o mercado de IA continuará a crescer, com o surgimento de novas plataformas. “O tempo dirá o tamanho de cada uma no mercado, mas acredito que o GPT deve continuar com a maior fatia. Como o Google fez quando os buscadores surgiram”, aposta.
Aém de acelerar lançamentos das concorrentes, a DeepSeek também provocou turbulências no mercado financeiro. A NVIDIA é uma empresa americana que fabrica chips, que são unidades de processamento gráfico (GPUs) essenciais para treinar e executar modelos avançados de IA, como o GPT-4, Gemini e DeepSeek. As GPUs da NVIDIA são amplamente utilizadas porque possuem milhares de núcleos de processamento, permitindo cálculos massivos simultâneos, algo crucial para redes neurais profundas. “Os EUA impuseram barreiras à exportação de chips da NVIDIA para a China, dificultando o treinamento de IA no país. Isso levou a equipe da DeepSeek a otimizar seu código–fonte e desenvolver métodos mais eficientes de treinamento, tornando o processo menos dependente de hardware avançado e, consequentemente, causando quedas nas ações de grandes empresas do setor”, explica Lucas.
Se há algo certo, é que a revolução da Inteligência Artificial está apenas começando. Como na cena de “Her”, interagir com máquinas já não é apenas um ato de ficção. A grande questão que permanece é: até onde essas tecnologias irão, e como a humanidade lidará com um futuro onde a linha entre o natural e o artificial se torna cada vez mais tênue? .