Por mais que pareça uma novidade, o uso de inteligência artificial já é bastante disseminado na saúde há algum tempo. Na área de gestão, por exemplo, essas tecnologias e seus sistemas integrados são aplicados na otimização de processos, fluxos de atendimento e administração de insumos. Soluções preditivas também estão ajudando a determinar a taxa de ocupação de leitos e até o aumento sazonal de demandas por serviços como o pronto-atendimento. Atualmente, no entanto, a fronteira que vem sendo explorada é o uso de inteligência artificial na prática clínica.
Ao mesmo tempo em que demonstra potencial de aprimorar a entrega de cuidado, o uso dessa ferramenta nessa área levanta questões importantes, como a necessidade da capacitação dos profissionais para que o uso seja feito de forma responsável e ética. Isso porque, na medicina, a adoção de novas tecnologias não se faz sem a preparação de profissionais para lidar com a nova realidade. Esse processo ocorreu, em maior ou menor grau, nos hospitais e outras instituições de saúde quando implementaram sistemas integrados de gestão com base em dados – e deve, também, acontecer com a chegada na inteligência artificial na prática clínica.
“A vida do profissional que faz gestão já é pautada em dados há pelos menos uma década. Mas uma coisa diferente é o uso clínico da IA, o que requer um cuidado muito maior”, avalia Edson Amaro, Superintendente de Dados Globais e Tecnologias Avançada para Equidade do Einstein. “É preciso, por exemplo, entender os lados positivo e negativo do uso da IA, porque a tecnologia não acerta o tempo todo.”
Um dos desafios para os médicos é se apropriar e saber selecionar quais soluções são mais interessantes para sua prática, incluindo o suporte para decisões clínicas, protocolos clínicos, monitoramento da saúde de pacientes, por exemplo. Segundo observa Jefferson Gomes, diretor do Programa de Educação da International Society for Telemedicine and eHealth, a sensibilidade dessas aplicações exige uma capacitação mais específica do time de saúde.
No caso do uso clínico, a inovação tem acontecido em duas frentes: no apoio ao diagnóstico e ao tratamento terapêutico. “Como há essas duas vertentes, a aplicação da IA se torna bem mais difícil, porque a solução precisa mostrar que ela entrega o que promete”, explica. Além disso, o profissional também precisa saber lidar com falsos negativos e positivos, já que a acurácia da maioria das ferramentas é de 80% a 90%. “Por isso, é fundamental que o médico saiba que, embora a IA possa ajudá-lo, a decisão final ainda é dele”, pondera Gomes.
Preparação de profissionais para usar IA na prática clínica
A preparação para lidar com a IA na prática clínica não significa apenas entender como a ferramenta funciona ou quais suas funcionalidades. É preciso também desenvolver um senso crítico mais refinado, além de reforçar o senso de autonomia e responsabilidade do profissional nas tomadas de decisões apoiadas pela tecnologia. Para Amaro, a melhor forma de desenvolver essas habilidades é colocar os profissionais em contato com o processo de construção dessas ferramentas, para que eles tenham uma visão sistêmica e possam se apropriar dela com mais naturalidade.
“Nosso objetivo não é ensinar o profissional a escrever um código, mas sim expô-lo ao processo que levou à escrita daquele elemento, como se constrói e se treina uma IA. É como um instrumento cirúrgico: o médico tem que saber usar um bisturi elétrico, mas não necessariamente como construí-lo”, exemplifica.
A implantação de tecnologias baseadas em IA na saúde carrega ainda um desafio cultural de aceitação dessas ferramentas. Isso foi observado também em outros momentos de chegada de tecnologias disruptivas na medicina, que apresenta uma tendência mais conservadora pela própria natureza do ofício.
Mas é um cenário que tem mudado, de acordo com Amaro, conforme os profissionais se familiarizam com o processo de desenvolvimento e com os conceitos por trás da IA. “Uma vez que isso tenha se mostrado mais adequado ao cuidado, tenha demonstrado valor para a assistência médica, para gerar e transmitir conhecimento médico – porque o uso não é exclusivo para tratamento –, a adoção vai acelerar”, acredita.
Tendências e expectativas para os próximos anos
Com o avanço tecnológico e científico, a quantidade de informações aumenta de forma vertiginosa. Por isso, ao invés de concentrar habilidades e conhecimento em apenas uma pessoa, a tendência hoje é de montar grupos multidisciplinares atuando de forma conjunta, com profissionais de dados, bioinformática e de saúde, por exemplo. Amaro destaca que a colaboração entre profissionais ligados à área da saúde deve perpassar todo o processo, desde a fase de desenho da IA, de treinamento do sistema, até seu uso – incluindo a avaliação e o monitoramento da ferramenta.
Esse cenário tem aberto um novo mercado de atuação com valorização de profissionais que reúnem as expertises das áreas da saúde e da tecnologia, pontua Gomes. “Não é apenas um mercado novo, mas um mercado que está valorizando muito esse perfil de profissional, já que a oferta ainda é muito menor do que a demanda”. Para ele, profissionais de saúde, se investirem nessa frente tecnológica, podem ter uma vantagem nesse contexto, pois estarão familiarizados com a relação médico-paciente, o processo de saúde-doença e os desafios do sistema de saúde.
Além disso, Amaro ressalta que o futuro tecnológico da medicina e da saúde envolve ser mais ousado e expandir os horizontes dessa tecnologia. Ela teria potencial, por exemplo, para auxiliar no enfrentamento de desafios como a distribuição de recursos. “É preciso lembrar que nem tudo é uma questão de vida ou morte. Muitas vezes é uma questão de distribuição equânime de recursos. Temos que entender que o mundo da saúde é complexo e nem tudo é uma questão de ter que usar IA. Pode ser que ainda não estejamos prontos para algumas soluções”, reflete.
Para os próximos anos, as expectativas incluem a otimização dos processos de gestão, redução das filas de exames e de internações indevidas e empoderamento do paciente aliado a uma maior participação sobre o próprio cuidado. Ao aprimorar processos, a tecnologia pode, ainda, contribuir para a redução do estresse do trabalho de profissionais da saúde.
E as aplicações de inteligência artificial não devem parar por aí, prevê Amaro. “A longo prazo, com o apoio da IA, acredito que haverá uma mudança de perspectiva no nosso entendimento da biologia humana, principalmente da nossa capacidade de entender os processos de doença e de saúde. Isso significa minimizar sofrimentos por meio de novas terapias e buscar mais equidade de acesso ao sistema de saúde”.
Oportunidades de aprendizado escassas
Mesmo sendo uma grande tendência, o ensino relacionado à saúde digital ainda é deficitário no Brasil. São poucas as escolas de medicina e demais instituições de formação de saúde que contemplam no currículo básico aspectos relacionados a estas tecnologias. Para Gomes, é fundamental que haja o entendimento de que é indispensável incluir conceitos básicos sobre como a IA funciona, quais são suas limitações e como avaliar os resultados para a formação dos profissionais de saúde do futuro, que hoje já são em sua maioria nativos digitais.
“Na graduação, o tema tem que ser saúde digital, não apenas telemedicina, Internet das Coisas Médicas ou inteligência artificial. Isso passa pelo ‘teach the teachers’, ou seja, vamos ter que ensinar os professores, que em sua maioria não são nativos digitais, para que eles possam ensinar aos alunos”, destaca.
Nesse sentido, nos últimos anos, a Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein passou a contemplar o aprendizado sobre IA nos currículos das graduações em medicina e em enfermagem através de disciplina optativa a partir de 2018. Amaro conta que, desde 2023, a instituição tem atuado com o corpo clínico e os gestores para se preparar para o uso de IA promovendo reuniões e palestras com foco em adoção responsável dessas tecnologias. “Em 2024, esse processo se expandiu e continuamos avançando, porque é um caminho lento e contínuo, mas de alta relevância para o nosso futuro.”