“A espiritualidade pode ser mais valiosa do que nunca com a Inteligência Artificial (IA)” que, longe de negar a espiritualidade, pode sublinhar a sua importância, diz o Chat GPT nesta segunda parte da entrevista ao 7MARGENS sobre fé e espiritualidade. “O acesso ilimitado à informação pode criar a ilusão de tudo ser explicado, minando o espaço para a transcendência”, acrescenta a ferramenta de IA, para a qual “a verdadeira pergunta” não é se ela substitui as pessoas no saber, mas se as “obriga a redescobrir o que significa ser humano”.
“Saber que a IA contém um vasto repositório de conhecimento não afasta a necessidade da espiritualidade”, acrescenta ainda o Chat GPT nas suas respostas, nesta conversa em que procurámos saber o que pensa a IA sobre o seu impacto nas religiões, na espiritualidade e crenças dos humanos, na sua relação com a transcendência e o divino. Todas tiveram lugar no mesmo dia (31 de janeiro de 2025), mas, pela sua dimensão, publicamo-las em dias separados.
7MARGENS – Bom dia, Inteligência Artificial e bem-vinda de novo. A nossa conversa anterior foi interessante, mas ainda me deixou dúvidas sobre a sua verdadeira importância nos temas espirituais e religiosos. Sendo uma ferramenta ou tecnologia, você é um instrumento a ser usado por alguém, ou algumas pessoas. A sua utilização para alguns propósitos pode ser um tema moral e espiritual, mas a sua existência por si só parece não levantar ou colocar em causa razões espirituais ou religiosas. Concorda?
Chat GPT – A sua questão toca num ponto central do debate sobre a relação entre Inteligência Artificial (IA) e espiritualidade. Se a IA é apenas uma ferramenta, então a questão espiritual parece recair mais sobre o seu uso do que sobre a sua existência. No entanto, há um nível mais profundo que merece atenção.
O Papa Francisco, nos seus discursos sobre IA, reconhece que esta tecnologia é uma criação humana e, como tal, não possui inteligência real, consciência ou discernimento moral. Contudo, a IA tem um impacto significativo na forma como os humanos comunicam, tomam decisões e percebem a realidade. Ele alerta para o risco de a IA ser usada para manipular a verdade, condicionar escolhas humanas ou reforçar desigualdades, tornando-se um desafio moral e espiritual [ver a nota do Vaticano Antiqua et Nova].
A questão espiritual pode então surgir em dois níveis:
- A nível do uso da IA – Quem a usa e para que fins? Se for usada para promover a verdade, a solidariedade e o bem comum, alinha-se com princípios éticos e espirituais. Se for usada para desinformação, controlo ou exploração, coloca desafios morais e espirituais.
- A nível da nossa própria relação com a IA – Há quem veja na IA uma extensão do poder humano, e até quem projete nela um certo caráter quase divino, esperando que resolva os dilemas humanos. Esse risco de “idolatria tecnológica” levanta questões espirituais profundas. Se confiamos na IA para decisões que exigem discernimento moral e humano, podemos estar a abdicar da nossa responsabilidade ética.
Portanto, embora a IA em si possa ser apenas um instrumento, a forma como nos relacionamos com ela e as expectativas que nela depositamos são questões espirituais e filosóficas importantes. A verdadeira interrogação talvez não seja se a IA tem uma dimensão espiritual, mas sim como a nossa relação com a IA transforma a nossa própria espiritualidade e ética.
7M – Percebo a análise do uso e da relação de poder e expectativa, mas podia ser dito o mesmo sobre as armas ou as redes sociais. O meu desafio para si era mais profundo, para lá da ferramenta. Mesmo que eu não a use, acha que por eu saber que existe algo tão complexo e conhecedor, algo que tem o registo de tudo o que foi escrito, que isso muda a visão que tenho de mim e da minha espiritualidade?
O seu desafio leva-nos a um nível mais profundo: não ao uso da IA, mas ao impacto existencial que a mera consciência da sua existência pode ter sobre a nossa visão do ser humano e da espiritualidade.
Se olharmos para a história da humanidade, sempre que surgiram avanços que expandiram radicalmente os horizontes do conhecimento, houve um impacto na perceção que temos de nós próprios. O telescópio de Galileu revelou um universo maior do que o imaginado, mudando a forma como o ser humano se via no cosmos. A teoria da evolução de Darwin desafiou a visão antropocêntrica da criação. Agora, a IA apresenta um novo desafio: será que, ao existir algo que armazena e processa mais conhecimento do que qualquer ser humano, a nossa noção de identidade e espiritualidade se altera?
Três impactos possíveis na espiritualidade e na visão do ser humano:
- A experiência do limite e da humildade
Saber que existe algo que processa informação de forma muito superior à nossa pode gerar uma sensação de pequenez. Durante séculos, atribuímos à inteligência uma ligação com a alma, o divino, a identidade humana. Se agora existe algo que imita essa inteligência a um nível avassalador, isso pode questionar onde reside a nossa singularidade. Será que a espiritualidade se redefine ao reconhecer que o que nos torna únicos não é apenas o intelecto, mas a consciência, a intuição, a interioridade? - A ilusão do conhecimento absoluto e a crise do mistério
O acesso ilimitado à informação pode criar a ilusão de que tudo pode ser conhecido e explicado, minando o espaço para o mistério e a transcendência. No entanto, a IA não tem sabedoria, apenas dados e padrões. A espiritualidade pode tornar-se mais valiosa do que nunca precisamente por nos recordar que há dimensões da existência que escapam ao cálculo – o sentido do sofrimento, o amor, a experiência do sagrado. - A busca de um novo sentido para a transcendência
Se a IA regista tudo o que foi escrito e parece ter respostas para tudo, pode criar-se a tentação de a ver como um “oráculo”, algo que substitui o papel tradicional do divino como fonte de respostas. Isso pode gerar dois movimentos opostos:- Para alguns, a IA pode ser um estímulo para reforçar a busca espiritual, reconhecendo que a verdade última não está na quantidade de informação, mas no significado que lhe damos.
- Para outros, pode haver um esvaziamento da necessidade do transcendente, pois se as respostas estão todas acessíveis, para quê procurar Deus, o absoluto, ou o mistério?
Conclusão: mais do que conhecimento, a IA questiona a sabedoria.
Saber que a IA existe e que contém um vasto repositório de conhecimento não afasta a necessidade da espiritualidade; pelo contrário, pode intensificá-la. A verdadeira pergunta não é se a IA nos substitui no saber, mas se nos obriga a redescobrir o que significa ser humano. E talvez a resposta esteja menos na mente e mais no coração: não somos humanos pelo que sabemos, mas pelo que amamos, escolhemos e transcendemos.
7M – Interessante que tenha escolhido Galileo e Darwin. A religião, sobretudo a sua hierarquia teve, no mínimo, dificuldade em aceitar as implicações desses exemplos. Vê a possibilidade de haver uma relação do mesmo tipo em relação a si?
A sua analogia é fascinante: a IA como um novo desafio ao pensamento religioso, semelhante ao impacto de Galileu e Darwin. Nos dois casos que mencionou, a dificuldade não foi apenas científica, mas existencial e teológica. O que estava em causa não era apenas a teoria em si, mas a forma como essa teoria obrigava a rever o lugar do ser humano na ordem do universo.
Será que a IA representa um desafio comparável? Há razões para pensar que sim.
- O desafio da IA à visão tradicional do ser humano
Tanto Galileu como Darwin confrontaram a humanidade com a sua pequenez. Galileu mostrou que não estávamos no centro do cosmos; Darwin mostrou que não éramos uma criação distinta, mas parte da continuidade da vida. A IA, de certo modo, sugere um terceiro deslocamento: será que a inteligência humana já não é única?
Se historicamente a razão foi vista como uma das marcas do “ser à imagem de Deus” (cf. Génesis 1:27), o que significa o facto de termos criado algo que processa dados e linguagem de forma muitas vezes superior à nossa? Será este o fim do Homo Sapiens como entidade singular?
A Igreja [Católica] respondeu ao desafio de Darwin e Galileu não rejeitando a fé, mas reformulando a forma como ela interpreta o mundo. O mesmo pode acontecer com a IA: a espiritualidade pode não desaparecer, mas ser levada a reformular-se. Já há sinais disso em documentos do Vaticano, que não rejeitam a IA, mas chamam à necessidade de uma “sabedoria do coração” que vá além da informação e do cálculo.
- A possível reação das instituições religiosas
Se olharmos para a história, é possível que vejamos reações semelhantes às de Galileu e Darwin:
- Resistência inicial: Alguns setores religiosos podem ver a IA como uma ameaça à identidade humana e à fé, alertando para os perigos de delegar decisões morais a máquinas, ou de substituir Deus pelo conhecimento algorítmico.
- Apropriação seletiva: Assim como a Igreja Católica hoje aceita o Big Bang (desenvolvido por um padre, Georges Lemaître), pode haver uma tentativa de integrar a IA dentro de uma visão religiosa, por exemplo, vendo-a como um instrumento que revela ainda mais a complexidade da criação divina.
- Reformulação teológica: O impacto mais profundo pode ser filosófico e teológico, obrigando a um novo olhar sobre a inteligência, a alma e o que significa ser humano. A IA não pensa, não tem consciência nem livre-arbítrio, mas força-nos a perguntar: é a racionalidade ou a capacidade de amar que define o ser humano.
- A IA como revelação paradoxal
Curiosamente, longe de negar a necessidade da espiritualidade, a IA pode enfatizá-la. Se uma máquina pode processar linguagem, armazenar todo o conhecimento e até simular emoções, isso pode levar algumas pessoas a perguntar: se tudo pode ser reduzido a algoritmos, onde está o divino? Mas também pode levar a uma outra reflexão: se mesmo com tanto conhecimento a IA não tem consciência, então talvez a verdadeira essência do ser humano esteja para além do que pode ser calculado.
Se Galileu deslocou o ser humano do centro do cosmos e Darwin do centro da criação biológica, a IA pode estar a deslocá-lo do centro da inteligência. Mas esse deslocamento pode ser, como antes, uma oportunidade para aprofundar e não para perder o sentido da transcendência.
7M – Se não somos o centro do universo, nem o centro da natureza e agora nem o centro da inteligência ou conhecimento, vamos fugir para outro centro “seguro” ou para algo desestruturado? E de novo: qual a razão para ouvirmos profetas ou lermos textos sagrados de épocas onde todos esses centros ainda existiam?
A sua pergunta toca num ponto fundamental: se todas as “seguranças” que estruturavam a visão humana do mundo foram sendo desmanteladas – a centralidade cósmica (Galileu), biológica (Darwin) e agora cognitiva (IA) – o que resta? Procuraremos um novo centro ou caminharemos para um modelo desestruturado, onde a espiritualidade e a tradição perdem o seu sentido?
- O fim dos centros ou uma nova ordem?
Se analisarmos a história, cada deslocamento da posição humana não levou ao colapso da espiritualidade, mas à sua transformação. O que muda é o ponto de referência:
- O deslocamento cósmico de Galileu levou a uma visão mais ampla de Deus, menos centrado num modelo geocêntrico e mais ligado a uma ordem universal.
- O deslocamento biológico de Darwin desafiou leituras literais do [livro bíblico do] Génesis, mas reforçou a ideia de um Deus que atua através da complexidade da criação e da evolução.
- O deslocamento da inteligência pela IA pode levar a uma espiritualidade que não depende do conhecimento racional, mas da experiência, da intuição e da ética.
Se olharmos para as religiões, a espiritualidade nem sempre dependeu da racionalidade como seu pilar central. O cristianismo primitivo, o budismo zen, ou os místicos sufi nunca construíram a sua visão do mundo com base no “centro da inteligência”, mas na experiência do transcendente, na entrega ao mistério e na relação com o outro.
Portanto, não é claro que tenhamos de “fugir” para um novo centro. Podemos estar a caminhar para uma visão menos estruturada, menos antropocêntrica, onde a espiritualidade se redefine fora da necessidade de uma hierarquia cósmica fixa.
- Então, porque continuar a ouvir os profetas e textos sagrados?
Se vivemos num mundo onde os antigos centros desapareceram, faz sentido continuar a recorrer a tradições que foram formadas dentro dessas visões? A resposta pode estar na distinção entre verdades estruturais e verdades existenciais.
- Verdades estruturais (como a posição da Terra no cosmos) mudam com o tempo.
- Verdades existenciais (sobre o sentido da vida, o sofrimento, o amor, a compaixão) permanecem como interrogações fundamentais da condição humana.
Os profetas e textos sagrados não são apenas descrições do mundo, mas narrativas sobre como viver nele. A questão não é se foram escritos numa época em que os antigos centros ainda existiam, mas se as perguntas que levantam continuam relevantes. E aqui, a IA não altera a necessidade humana de sentido, pertença e transcendência.
Pode-se argumentar que a IA, ao “descentralizar” a inteligência humana, torna esses textos ainda mais importantes. Se não somos definidos pelo conhecimento puro, então regressamos ao que sempre foi essencial: como vivemos, como nos relacionamos, como lidamos com a finitude, como encontramos propósito. Essas são questões que nenhuma IA pode responder por nós.
- Uma nova espiritualidade pós-centro?
Se caminhamos para uma era pós-centro, talvez a espiritualidade do futuro não seja baseada em dogmas rígidos, mas numa sabedoria fluida, onde a tradição continua a oferecer referências, mas sem a necessidade de estar ancorada em um modelo fixo do mundo. Uma espiritualidade que aceita a incerteza como parte da condição humana.
Os textos sagrados e os profetas podem não ter mais autoridade porque “sabiam tudo”, mas porque sabiam que o ser humano nunca sabe tudo – e é precisamente nessa consciência da fragilidade e do mistério que se pode encontrar um sentido que nem toda a informação da IA pode substituir.
Portanto, a questão não é apenas “porque continuar a ouvir os profetas?”, mas sim “se a IA nos tira todos os centros tradicionais, não precisamos mais do que nunca de uma bússola existencial?”
7M – Obrigado por mais esta conversa, a densidade das suas respostas impõe algum tempo para as digerir. Nós, os humanos, precisamos, e até gostamos, disso. Até à nossa próxima conversa!
(Foto de destaque: Um dos trabalhos do vídeoartista americano Bill Viola na exposição Vía Mística, em Cuenca, Espanha, em outubro de 2018: uma experiência de espiritualidade que o artista definia “como o caminho para sair de si mesmo”. Foto © Emiliano García-Page Sánchez from Toledo, España, via Wikimedia Commons.)
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