Calma, nada disto tem a ver com Portugal. Foi em Inglaterra que o Tony Blair Institute for Global Change, think-tank do ex-primeiro-ministro que, diz-se, mantém forte ligação ao atual executivo trabalhista, publicou a passada semana um relatório em que conclui que “o Reino Unido está obrigado a escolher: ou prepara o NHS [o serviço público de saúde] para a Inteligência Artificial ou prepara-se para perder o NHS”.
E como o estudo não é sobre Portugal, podemos fazer a sua leitura de uma forma menos apaixonada, o que vale a pena até porque a reflexão sobre a Inteligência Artificial (IA) tem por base a realidade, os problemas e as perspetivas do serviço nacional de saúde inglês (NHS).
Assim, aquele instituto sustenta que face às necessidades em saúde e à evolução recente, será essencial para a sustentabilidade do NHS o aumento da produtividade, nomeadamente tendo em conta que, pelos dados oficiais, os serviços de saúde têm hoje mais 45% de financiamento do que há dez anos, mas a atividade não aumentou mais do que 35%. A causa identificada como principal obstáculo foi o insuficiente investimento em infraestruturas, físicas e digitais.
Sem surpresas, o relatório identifica a prevenção como outra das prioridades absolutas, referindo que cerca de 40% do orçamento do NHS é consumido no tratamento de doenças evitáveis.
Mas não estamos presos ao fatalismo das tendências e é neste ponto que se conclui que os avanços na biotecnologia, nas indústrias farmacêutica e de dispositivos médicos, no digital e na IA podem ser instrumentos valiosos para progredir de forma decisiva, quer em termos de produtividade, quer de prevenção.
Numa outra interessante reflexão, também se refere que o NHS pode ser visto como um seguro e em duas diferentes aceções. Por um lado, porque deve ter uma perspetiva do risco de saúde associado à população e, consequentemente, aos cuidados de saúde que será preciso prestar. Por outro lado, porque com o grau e frequência das informações sobre a situação de saúde, haverá situações em que só o Estado poderá assumir determinados riscos. Uma vez mais este debate conduz à necessidade de distinguir num sistema de saúde o financiamento e a prestação, de modo a garantir em simultâneo eficiência e acesso.
No que diz respeito à IA propriamente dita há um apelo muito forte ao compromisso político para que haja Registo de Saúde Eletrónico (RSE) para todos os cidadãos, no prazo máximo de uma legislatura, salientando-se que há muito trabalho técnico, mas também de gestão a realizar. Há várias opções de evolução e será importante que se cumpram os objetivos (desde logo, para o cidadão, o acesso adequado e atempado, a continuidade do acompanhamento e a prevenção, mas também para as condições para a utilização secundária dos dados), enquanto se garante a confiança das pessoas no sistema e o devido envolvimento de todas as partes, nomeadamente em termos de interoperabilidade. Diz-se também que os investimentos para o RSE não devem substituir-se a outros investimentos necessários, nomeadamente para a transição digital da saúde.
Bem sabemos que o Reino Unido está fora da UE e que por cá os objetivos e cronogramas do Espaço Europeu dos Dados de Saúde são distintos. O potencial, no entanto, é similar e os objetivos da UE têm mesmo de ser mais ambiciosos porque a cidadania europeia vai também cada vez mais passando pela aspiração de que podemos ser tratados ao nível do melhor estado da arte, independentemente do sítio dos 27 em que nos encontremos.
Em termos de transição digital da saúde, da incorporação da IA e da evolução para o RSE este é o momento. É agora que é necessário para avançar e não nos podemos deixar atrasar. Acresce que a UE percebe cada vez melhor a saúde como fator de desenvolvimento.
Num país como Portugal, a discussão sobre a transição digital na saúde é daquelas em que vale a pena investir. O PRR pode (ainda) ser um instrumento para alavancar este processo. Não há saúde da instituição A ou da instituição B, não há saúde do privado nem saúde do público: há a saúde dos cidadãos que interessa preservar e valorizar. Assim queiramos dialogar, cada um assumindo as suas responsabilidades num sistema que é amplo, plural e multifacetado.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico