“Você tem sorrido muito durante a viagem. Gosta de voar?”, perguntou Hanna. A simpática comissária de bordo de 26 anos, loira, de olhos azuis e seu uniforme rosa, me abordou enquanto estava na cadeira do avião, viajando até a França. “Claro, eu amo. Um dos meus lugares favoritos é a Espanha, mais especificamente uma pequena ilha na cidade de Mallorca chamada Enseada Figuera. Você já esteve lá?” respondi. Hanna me abriu um sorriso de orelha a orelha e disse “jamais, mas gostaria de ter uma companhia para me levar e conhecer esse lindo lugar”.
O que poderia ser mais um romance água com açúcar lido por algum adolescente de treze anos, é na verdade uma conversa que tive com um chatbot pornográfico no site Erogen.ai. Hannah, parece muito mais real do que se imagina e é só uma das milhares de inteligências artificiais (IAs) presentes no site. A plataforma conta com diversas opções já pré-definidas de personas ou até mesmo a possibilidade da criação de um personagem único por meio de um prompt. Essas são as IAs de entretenimento adulto (ou IAs XXX, como também são conhecidas), voltadas para gerar algum tipo de envolvimento “picante” entre humano e máquina.
É a prova de que a indústria da pornografia está sendo moldada pela inteligência artificial, um mercado que já nasce grande e pode se tornar ainda maior.
Diferentes tipos de inteligência artificial pornô
No campo textual, a pornografia com IA utiliza principalmente chatbots baseados em Processamento de Linguagem Natural (NLP). Esses sistemas permitem simular respostas humanas em conversas interativas, criando cenários que atendem às expectativas dos usuários – eles são uma espécie de “ChatGPT pornô”. Esses chatbots de sexo são programados para interpretar comandos e responder de forma personalizada, aumentando o grau de imersão.
“O desempenho dessas ferramentas depende diretamente do volume e da qualidade dos dados com os quais foram treinados. A limitação do acesso a dados mais diversos pode restringir a capacidade do sistema de criar cenários complexos ou interpretar solicitações menos comuns” explica Pedro Francisco, pesquisador em inteligência artificial da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Entre os serviços disponíveis, estão plataformas populares como o Candy.ai e Lustlab.ai. Eles permitem aos usuários personalizar experiências interativas. Nessas sites, é possível criar personagens com características detalhadas, incluindo idade, gênero, etnia, estilo de cabelo, trajes e até comportamentos e expressões faciais. Além disso, o ambiente onde as interações ocorrem pode ser customizado, abrangendo locais como igrejas, supermercados ou até monumentos históricos como o Coliseu de Roma.
O Erogen, plataforma onde “conversei” com Hanna, permite também que os usuários participem de conversas que simulam interações humanas realistas, podendo configurar personalidades e preferências. Uma de suas peculiaridades inclui chamadas de voz com IA, nas quais o chatbot pode “ouvir” a voz do usuário, converter fala em texto e responder de forma personalizada. Essa tecnologia, chamada “AI Listening”, oferece uma experiência ainda mais envolvente, permitindo respostas em tempo real com vozes geradas por IA. Todo esse conteúdo é ajustado automaticamente ao contexto da conversa, proporcionando uma representação visual que reflete as interações em tempo real. Apesar disso, a funcionalidade ainda é um pouco “assustadora e bizarra” sendo possível perceber claramente que se trata de uma IA e não uma pessoa real.
A monetização da plataforma ocorre por meio de diferentes planos de assinatura, cada um com funcionalidades específicas. O plano gratuito oferece um número limitado de mensagens e um histórico de chat de até um ano. Já o plano Silver, com custo mensal de US$ 15, expande as mensagens disponíveis, dobra a capacidade de memória de contexto e libera o histórico de conversas de forma ilimitada. O pacote Platinum, por US$ 35 mensais, oferece mensagens ilimitadas, uma maior capacidade de armazenamento, acesso antecipado a funcionalidades em fase beta e outros recursos. Todas as assinaturas incluem opções adicionais, como transcrição de mensagens por IA e modos de telefone controlados por voz.
As IAs voltadas para conteúdo adulto compartilham similaridades com modelos como o ChatGPT, Gemini e Copilot em termos de tecnologia e arquitetura de treinamento, mas apresentam diferenças fundamentais em suas bases de dados e medidas de segurança. Ambos utilizam a arquitetura de Transformadores Pré-Treinados Generativos (GPTs), projetada para compreender e gerar texto de forma contextualizada e coesa. A abordagem de aprendizado inclui supervisão humana e reforço com feedback humano (RLHF), o que ajusta respostas do modelo conforme avaliações feitas por treinadores.
Entretanto, plataformas “mainstream” seguem diretrizes rígidas para evitar conteúdos sexualmente explícitos, enquanto o pornô de IA utiliza bases de dados que contenham esse tipo de conteúdo. Isso os torna aptos a responder de forma personalizada conforme as preferências dos usuários. O interesse de usuários pelo tema está fazendo até a OpenAI, dona do ChatGPT, liberar conteúdo adulto na sua ferramenta.
Imagens pornográficas geradas por IA
Os chatbots de conversa não são os únicos responsáveis pela IA estar presente na indústria pornográfica. Há também a possibilidade de geração de imagens em outras ferramentas, que, diferentemente ao ChatGPT ou o MidJouney, acaba por “retirar as travas” e permite a criação de material visual explícito com IA.
O principal modelo utilizado é o Stable Diffusion, uma tecnologia de aprendizado profundo que gera imagens a partir de descrições textuais. Esses prompts podem descrever características como roupas, localizações e aparência física, permitindo a geração de figuras fictícias e personagens irreais em contextos sexuais. Por exemplo: caso queira criar um avatar com 3 metros de altura, bigode ruivo e de calça roxa, seria possível. Esse modelo se destaca por sua capacidade de replicar estilos e técnicas com alta fidelidade, tornando difícil distinguir as imagens geradas por IA das produzidas por artistas ou fotógrafos (exceto em casos extremos como o citado no exemplo).
Na produção de vídeos, a inteligência artificial pornô é utilizada em duas vertentes principais: os deepfakes e o uso do Stable Diffusion para gerar vídeos do zero. Os deepfakes empregam redes neurais generativas conhecidas como Generative Adversarial Networks (GANs) para substituir rostos ou vozes de pessoas em imagens ou vídeos preexistentes. Já o Stable Diffusion, embora originalmente projetado para imagens, é adaptado para criar vídeos completos a partir de prompts textuais, possibilitando liberdade na criação de cenas.
A qualidade dos vídeos gerados ainda enfrenta desafios, já que a própria indústria tem encontrado desafios em fazer conteúdos longos sem erros. Movimentos e expressões frequentemente parecem artificiais, revelando a limitação da tecnologia na reprodução de comportamentos humanos realistas.
Mesmo com esses impedimentos, a pornografia com IA já está criando um novo cenário para a produção de conteúdo adulto, e esse tipo de ferramenta tem atraído cada vez mais usuários. Estima-se que a indústria pornográfica está investindo mais de US$ 1 bilhão em diferentes vertentes de IA segundo levantamento do site Wifi Talents e que 87% dos sites adultos já estão usando esse tipo de tecnologia (não só para geração de conteúdo mas também personalização de algoritmos). Todo esse investimento e atenção tem um motivo: dinheiro.
Com a possibilidade de redução de custos para produção de conteúdos, maior possibilidade de entender preferências de usuários e a criação fácil e rápida de vídeos e imagens, tudo fica ainda mais lucrativo para uma indústria que já vale R$97 bilhões.
IA XXX: por que é tão interessante para algumas pessoas?
Uma das principais razões para o interesse crescente nas IAs XXX é a possibilidade de personalização. Usuários podem ajustar detalhes como gênero, idade (a partir de 18 anos), características corporais, roupas, cenários e até condições climáticas para criar cenas que atendam exatamente às suas expectativas. Cerca de 72% dos consumidores preferem esse tipo de material por ser altamente adaptável aos seus desejos e fantasias, segundo o Wifi Talents. Isso inclui modelos sintéticos criados sob demanda e cenários gerados para atender às expectativas individuais.
Além disso, essas criações podem ser feitas de forma anônima, eliminando o desconforto ou a exposição que podem estar presentes no consumo de conteúdos tradicionais. Isso contribui para uma experiência mais imersiva e controlada, diferente de vídeos comuns ou “experiências reais”.
A psicóloga Fernanda Calixto que atua como docente no Instituto Par, no programa de Mestrado em Análise do Comportamento Aplicada, destaca que essa busca por prazer mediado por tecnologia é um reflexo de uma sociedade com rotinas cada vez mais atarefadas e relacionamentos interpessoais mais complexos o que dá destaque a experiências mais rápidas, porém maximizadas em personalização, ou seja, do seu jeito. “Com menos tempo e a mediação das relações ficando por conta da tecnologia, as pessoas buscam algo de fácil acesso. Isso, aliado a personalização proporcionada pela pornografia de IA oferece uma alternativa que evita vulnerabilidades e desafios emocionais comuns em interações reais.”
O apelo da IA pornográfica reflete uma tendência mais ampla de hiperpersonalização em várias esferas da vida. A satisfação de desejos individuais por meio de experiências virtuais pode se estender para outras áreas, como entretenimento e relaxamento trazendo impacto a longo prazo em um estilo de vida cada vez mais isolado e centrado no indivíduo.
“A pornografia sempre foi algo extremamente presente na vida humana, seja por meio de imagens, filmagens. Mas, quando você fala de uma experiência personalizada, vem um sentimento muito maior de imersão. E, muitas vezes, também torna mais palpável, mais concreto, como se fosse mais real do que aquele prazer quando você simplesmente assiste um vídeo no qual não há nenhum tipo de personalização. E ainda, não é necessário se expor a uma relação real, que muitas vezes pode trazer, inclusive, ansiedade e desafios”, diz Fernanda.
A pornografia de IA também apresenta aplicações positivas, segundo matéria do site The Conversation, para compreender melhor os desejos e fantasias humanas, assim como em contextos terapêuticos, ajudando no tratamento de disfunções sexuais ou no enfrentamento de medos relacionados à intimidade. Além disso, a diversidade de corpos e situações que podem ser representados pode contribuir para a educação sexual, promovendo uma compreensão mais ampla das preferências e limites individuais.
Outro fator a ser levado em conta é a possibilidade de produção massiva e ilimitada desse tipo de conteúdo. Com diversos sites gratuitos já disponíveis (e outros com opções pagas), a oferta de conteúdo é vasta e em constante expansão. Esse crescimento não apenas facilita o acesso a material personalizado, mas também reduz os custos de produção, tornando o conteúdo mais acessível ao público em geral que não precisa, por exemplo, pagar um valor muito maior comparado aos oferecidos por esses sites para assistir a apenas uma “mega produção pornográfica” – sem nem saber se os seus desejos serão contemplados.
“Juntando o contexto no qual as pessoas têm uma vida muito mais atarefada, no qual o relacionamento real com o outro é tão complexo e que existe essas possibilidades e facilidades, não é de se estranhar que o relacionamento mediado pela tecnologia aumente muito mais”, diz Fernanda.
Mas nem tudo são flores. Há preocupações sobre o impacto nas relações humanas causado pela conexão entre pornografia e IA. À medida que se torna mais comum e socialmente aceitável, pode levar a uma maior dependência de experiências virtuais, reduzindo o interesse por relacionamentos interpessoais reais. A psicóloga destaca que a interação com outros seres humanos exige vulnerabilidade, comunicação de desejos e estabelecimento de limites – aspectos que não estão presentes nas interações mediadas por tecnologia.
Quais os riscos de inteligência artificial e pornografia?
Segundo a SaferNet Brasil, denúncias sobre o compartilhamento e comercialização de imagens de abuso infantil envolvendo IA aumentaram substancialmente em 2024. Um relatório apontou que mais de 1,25 milhão de usuários no Telegram estavam em grupos onde materiais ilícitos, incluindo pornografia infantil gerada por IA, eram compartilhados. A rede social contestou as informações do relatório, afirmando que a alegação se trata de um número absurdo e afirmou combater ativamente a disseminação desse tipo de conteúdo em sua plataforma com tolerância zero.
A legislação brasileira, por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já considera crime a simulação de cenas envolvendo crianças em conteúdo pornográfico, com penas que variam de um a três anos de reclusão, além de multa. A proposta de regulamentação da IA em discussão no Congresso Nacional reforça essa proteção, visando coibir a criação e disseminação de imagens de abuso sexual infantil geradas por IA.
“Temos um limite muito claro, que é a garantia da proteção da imagem deste público, sejam as imagens reais, de uma pessoa específica, mas neste caso de representações também de violência sexual”, afirma Emanuella Halfeld, analista de Relações Governamentais do Instituto Alana.
Mesmo com ferramentas voltadas para entretenimento adulto consensual, a possibilidade de anonimato na criação e distribuição facilita abusos. A capacidade de personalizar conteúdo, aliada ao fácil acesso a ferramentas avançadas, permite que indivíduos simulem cenas envolvendo pessoas reais, infringindo direitos de imagem e privacidade.
Nos Estados Unidos, leis específicas como a Seção 2257 exigem que produtores de conteúdo comprovem que todos os indivíduos envolvidos têm mais de 18 anos. O Erogen, site onde foi feito o teste com a Chatbot, por exemplo, deixa bem claro em seus termos e condições que todo conteúdo envolvendo menores de idade é proibido. “Os personagens não devem ser menores de idade, não devem ser descritos como se assemelhando a um humano pré-púbere e não devem ter a capacidade de se transformar ou mudar de forma para alguém que seja ou se assemelhe a um menor”.
Contudo, aplicar essa regra a imagens geradas por IA é complexo, especialmente quando o conteúdo é criado por usuários sem supervisão e com a IA ainda em passos iniciais e sujeita a falhas. A criação de deepfakes envolvendo celebridades e figuras públicas tem sido amplamente criticada por violar direitos de imagem e dignidade. Em casos extremos, a normalização desse conteúdo pode trivializar crimes como a pornografia de vingança.
Um caso desse tipo ocorreu em um colégio particular da zona oeste do Rio de Janeiro onde mais de 20 alunas foram vítimas de produção de fotomontagens nas quais, devido à alteração nas imagens por ferramentas de IA, elas aparecem nuas.
Sem medidas eficazes, o fácil acesso a ferramentas de IA pode ampliar desigualdades e normalizar práticas prejudiciais e criminosas. Por isso, é necessário haver regras bem delimitadas quanto a esse tipo de conteúdo. “A regulação dessas ferramentas é fundamental para garantir que essas tecnologias não perpetuem violações de direitos humanos. É necessário haver um amparo para impedir essa produção abusiva de estar em circulação”, destacou Emanuella.
Vai ser o futuro?
A indústria pornográfica continua a ser uma das primeiras a adotar e promover avanços tecnológicos. A pornografia tem historicamente desempenhado um papel pioneiro na adoção de tecnologias emergentes. Desde os anos 1970, a indústria liderou a popularização de tecnologias como VHS, streaming de vídeo e sistemas de pagamento online. Com a IA, a tendência é seguir essa linha de inovação e expandir ainda mais o alcance e a personalização do conteúdo. Contudo, questões fundamentais persistem: como garantir que esses avanços não prejudiquem os profissionais humanos?
Criadoras de conteúdo adulto expressam receio de que a chegada de IA conversacional, possa substituí-las na hora de atender às necessidades emocionais e de conexão dos assinantes. Elas temem que a facilidade e gratuidade de interagir com uma IA possa levar os clientes a abandonarem as criadoras reais. Em matéria da ChainSaw, Sharna Beckman, dominatrix australiana que trabalha na plataforma OnlyFans disse que a chegada desse tipo de conteúdo pode destruir toda a indústria.
“A tecnologia de IA está ficando louca. Como criadora de conteúdo, estou preocupada pois meus clientes podem migrar e achar mais fácil e gratuito conversar com um computador para satisfazer suas necessidades,” disse na reportagem.
Ruby Drew, outra criadora da plataforma, tem uma visão um pouco diferente. Ela compartilha do sentimento de Sharna dizendo que a IA roubar o emprego de alguém não parece ser uma coisa boa. “É um pouco preocupante que possa tirar alguns assinantes de nós, criadoras de conteúdo.” Porém, Drew ressalta que a maioria dos seus assinantes ainda quer uma conexão humana e que preferem falar com ela especificamente – não com uma IA.
Outras criadoras, como Annie Knight e Alicia Davis, também acreditam que a conexão humana continuará sendo um diferencial importante do OnlyFans. Elas argumentam que os usuários buscam a interação e a personalidade das criadoras, algo que a IA ainda não consegue replicar com o mesmo nível de autenticidade. Na verdade, a “IA pornô” pode ser uma aliada dos negócios. Uma matéria do jornal The Washington Post revelou que Sophie Dee uma criadora de conteúdo adulto em Las Vegas treinou um chatbot gerador de imagens, para imitar sua aparência e fala, fazendo com que ela ganhe dinheiro com cada fã que o usa, a partir de US$ 5 por mês.
“Modelos são como atletas de certa forma. Durante nossos anos de pornografia, não recebemos benefícios residuais, não há plano de saúde, você só recebe um cheque e nunca sabe quando vai acabar”, diz Dee. “Agora sinto que, com a IA, posso continuar. Mesmo que eu decida parar um dia de filmar coisas adultas, ela pode continuar.”
Mesmo assim, sites considerados “mais tradicionais” de pornografia como o Xvideos e o Pornhub ainda não utilizam de maneira massiva esse tipo de geração de conteúdo. A reportagem notou que a presença de vídeos gerados por IA nessas plataformas é baixa, tendo a predominância de conteúdos com pessoas reais. O que já está sendo feito desde 2017, de acordo com o Pornhub, é a categorização dos tipos de vídeo, identificação de atores e melhoria de algoritmos para redução de custos e melhor personalização do site. No Brasil, o famoso produtor de conteúdo de conteúdo adulto, Brasileirinhas, se manteve longe dessa tecnologia, não utilizando nenhum tipo de IA para produção de vídeos ou imagens.